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domingo, 17 de agosto de 2014

Beatriz quer casar mais eu...

Beatriz é mulher de fibra, daquelas que garra o touro a unha e não solta, nem se o touro resolve dar
de cordeiro.

Desde menino tenho o sonho de casar mais ela.

Na infância, brincávamos soltos campo afora, subia em árvore, atravessava rio, caia, lascava o
dedão do pé e ralava os joelhos dia sim e o outro quem sabe.

Para Beatriz nunca houve tarefa impossível.

Se era para subir na árvore mais alta. Aff...Essa minina batia os pés, cuspia nas mãos e se
equilibrava tronco acima.

Os meninos da rua, tinham inveja dela, logo quando se mudou para sítio vizinho, era só ela de
minina e um mundo de outros meninos homens.

Beatriz não poderia ser só uma menininha, ela nunca seria aceita, ela teve de ser uma menina
mulher. E como mulher menina aprendeu rápido que seria posta a prova a todo tempo.

Ela provou que subir em árvores não é coisa de menino, mas coisa de quem quer pousar no alto
como os pássaros.

Que futebol não é jogo só de homens, que a menina também pode brincar de correr, se descabelar e
sujar o rosto de poeira. Ensinou que brincar de comidinha não era brincadeira de minininha e que
meninos não são menos meninos por que aprenderam a acender o fogãozinho de lenha que
montávamos no fundo do quintal da avó.

Numa dessas tardes, jogávamos bolinha de gude e conversa fora. Lá longe, atrás da cerca do Zé
Maria, veio uma pessoinha de boina azul e coturnos pretos, até achei que era filho de algum dos
peões novos que chegavam para trabalho de temporada. Não era nada, era Beatriz, ela ganhou de
um tio da cidade o coturno preto e a boina azul.

Chegou cheia de si, mostrando os presentes novos para os amigos. Bentinho, filho do seu João da
mercearia, já olhou torto para Beatriz, disse que coturno é coisa de menino e menina de família
nunca que poderia ficar correndo solta, ainda mais vestida assim.

Beatriz ofereceu os coturnos para Bentinho, ele calçou, correu, deu uns pulos e disse alto: “ Viu que
coturno é sapato de homem.” Beatriz, como não é boba nem nada, pediu de volta os sapatos, calçou,
correu, pulou e afirmou: “ Sapatos são sapatos, você que resolveu que coturnos são de homens, pois
esses são meus...”

Depois disso, deu de bandas e foi jogar bolinha.

Fiquei com essa frase na cabeça: “ você que resolveu que coturnos são de homens, esses são
meus...”

Pois não é que Beatriz estava certa, eram dela. E coturno pode calçar minino e minina.

Beatriz, como todos os outros, corria livre, apesar da censura dos pais e da tacanhice repassada de
pai para filho, mas logo, logo, ela se fazia por si mesma, sem precisar provar mais nada.

Fomos crescendo e a braveza daquela mulher fazia-me suspirar campo afora. Umas vezes suspirava
de cansado mesmo, por que não era fácil acompanhá-la, outras era só encantamento.

Beatriz na sua meninice ensinou tanta coisa. Coisa que não se aprende nos bancos da escola, coisa
que meu pai nunca tinha pensado, e se pensasse guardava para ele.

Aprendi que não existe brincadeiras de minina e minino, que eu posso fazer todas as coisas que
falam que é só coisa de minina. Azul é só mais uma cor do arco iris, e que mininas vestem azul.

Rosa , não tem no arco iris, mas posso colorir de rosa tudo que quiser, inclusive tenho uma camiseta
rosa.

Beatriz, mostrou que mininas empinam pipas, jogam bola, sobem em árvores, brincam de casinha e
nem sempre querem ser a princesa.

Noutro dia, chutei uma pedra. Doeu, doeu, corri para trás do muro para chorar, não queria que
ninguém visse. Homem não chora, dizia meu pai. Não entendia muito bem, por que vez ou outra
escutava uns barulho estranho do quarto, um gemido, bem acho que ele chorava, mas chorar não é
coisa de homem.

Beatriz correu para ver por que eu demorava a voltar. Tava eu lá, agachado no chão com a cabeça
entre as pernas.

- Achei o você Jonas, já pode sair e eu lá com a cabeça enfiada entre as pernas, parecia que meu
olho tava furado, por que descia era água.

Beatriz viu meu dedo ferido, agachou do meu lado, me deu um abraço e disse para não ter
vergonha, todo mundo chora e bem deve ter doido essa topada. Eu ri, apesar da dor. Relutei em
erguer a cabeça, mas ela fez isso por mim. Limpou meu rosto, soprou meu dedo, deu as mãos para
que me reergue-se e os ombros para eu apoiar.

-Deixa de bestagem Jonas, você já me viu chorando leras de vezes.

Jonas: Mas eu sou homem, homem não chora

Beatriz: Chora sim, você tá chorando e continua a ser menino homem. Não tem diferença, homem
chora e sente dor igual, dor no corpo e dor na alma.

Dor na alma, isso ficou gravado. Acho que minha alma nunca doeu. No dia fiquei meio sem
entender, mas hoje sei bem quando minha alma dói.

Eu cresci, virei homem de fato. Chorei tantas outras vezes e continuei homem. É, Beatriz tava certa.
Quando fizemos 12 anos, os pais dela mudaram do campo para cidade. Eu fiquei, foi quando
apreendi como é sentir dor na alma. E doía tanto, tanto... Que eu preferia perder a tampa do dedo,
de todos os dedos mil vezes a sentir essa tal de dor na alma.

Eu tentava pensar em outras coisas, correr bem rápido campo a fora, cansar muito o corpo, para
esquecer da dor. E nem assim...

Eu tinha saudades. Mãe achou que eu tinha era verme uma época, fiquei amuado, vivia pelos
cantos, não queria brincar com os outros mininos e nem nada.

Beatriz sempre vinha nas férias, e eu sempre esperava, mais que natal e aniversário. Era o
acontecimento do ano, do meu ano.

Eu virei rapaz e ela moça, apesar da distância, do tempo que ficávamos sem nos ver. Sempre
tínhamos papo para varar a noite. E fomos crescendo. Ela já moça com contornos de mulher, uma
belezura que só...

Ai Deus, antes bastava estar perto, contar as novidades, mas eu queria mais... E a queria tanto!
Mas Beatriz, menina mulher arretada, dona de si, sempre desbravando novos horizontes,
atravessava oceanos.

Beatriz me ensinou desde criança que mulher é posta a prova dia a dia, toda a hora.
E eu tinha um pouco de medo, não sabia lidar com o mundo de mulher que ela havia se tornado. As
vezes achava não ser suficiente para ela, meu pai sempre disse a vida toda que mulher anda no
cabresto. Não entendia e também não concordava com ele.

Também , mesmo que quisesse e concordasse, Beatriz não é mulher de cabresto.
Já com certa idade, fui para cidade concluir meus estudos, como pai e mãe diziam, fui virar
“douto”.

Beatriz ajudou bastante, apresentou-me o mundo, suas mazelas, aventuras e muitas desventuras.
Íamos juntos para faculdade, e cada vez mais nossos laços se estreitavam. Entre cafés da manhã e
jantares, levava para cama todo o sentimento do mundo, dormia abraçado com meu bem querer,
dormia.

Beatriz, causava-me o mesmo encantamento de quando eramos crianças. Ela desbravava horizontes,
descortinou o meu verso, ensinou que somos livres por natureza e que muita gente quer colocar o
outro numa forma, ditando a forma de vestir, de falar, de portar-se.

Mal sabem que felicidade maior e ser livre, livre para pensar, falar e fazer tudo que der na veneta.
Ah, minha alegria é saber que Beatriz é pássaro que voa, mais a felicidade do mundo eu senti
quando descobri que Beatriz poderia voar para o mundo todo, mas escolheu posar do meu lado.

Texto finalizado em 31/07/2014
Aline Félix